segunda-feira, julho 16, 2007

50 Minutos

Conheciam-se desde sempre, e desde sempre uma qualquer electricidade corria entre eles. Era uma coisa altamente física mas era mais do que isso. Uma amizade profunda que se deixava perfurar pela atracção. Não se falava sobre isso, entre eles, mas toda a gente sabia e esperava. Era previsível, mas impraticável. Até ao dia em que deixou de ser inocente. A tensão era insuportável, sentia-se no ar entre eles. Os olhos ardiam, de tanta fixidez. Quem deles seria capaz de quebrar a corrente e dar um primeiro passo? Nenhum dos dois se atrevia, porque abrir um precedente significava ir até ao fim. Sem reservas. Sem pensar, mas sem consequências depois. Porque tudo continuaria na mesma, só a electricidade corrente poderia desaparecer. Poderia, mas sem certezas. Quem é que podia garantir que essa consumação não iria transformar uma amizade profunda entre um homem e uma mulher, nada inocente mas, ainda assim, platónico, no Amor de uma vida? Nenhum dos dois sabia se queria uma coisa assim, mas os dois conheciam as consequências. Não havia nada a perder, mas nem ele nem ela se mexeram. Durante cinquenta longos minutos escorridos nos vidros embaciados do carro. Não se tocavam, mas sentiam a vibração da pele um do outro. Desejo puro, que se sente, se respira, que tem cheiro e que quase se ouve nas células. Um único movimento contradizente e acabava-se o momento. Um desviar dos olhos. O silêncio não magoa, porque não existe. Respiração, corpos vibrantes, a chuva em cima do tejadilho. Calor insuportável. No momento em que ela decidiu mexer a cabeça para olhar para a rua, ele fez um movimento brusco, agarrou-a pelos ombros com força e puxou-a para si com as duas mãos. O beijo que a recebeu não foi ansioso, como esperava, mas fresco e leve, sem deixar de ser intenso. Ele agarrou-a mais e as mãos perderam-se nos cabelos cheios de vento e areia, despenteados pelo sal. E o que ela sentiu foi muito mais do que uma amizade profunda encerrada no desejo, foi muito mais do que electricidade e células vibrantes. Foi Amor. Amor puro. O Amor de uma vida e para toda a vida. E nesse momento, ela, como ele, teve a certeza que cada um dos cinquenta minutos que escorreram no relógio do carro valera tanto como cem anos de vida ao lado da vida dele.

domingo, julho 01, 2007

Coisas que acontecem na Baía

- Sabe o que é que se está a passar aqui?
- Sim, é o campeonato mundial de vela.
- E sabe até quando é que é? Uma amiga minha vai chegar dos Estados Unidos e queria saber.
- Tem lume? Só começa na 3ª feira, mas vai até meio do mês. Porque é que tem uma guitarra?
- Sou músico. Passei aqui e pensei: se começar a tocar para esta miúda, pode ser que ela me caia nos braços.
- Não me parece.
- Como é que se chama?
- Vera. E você?
- Nuno.
- Não quer tocar qualquer coisa?
- Sim. Se não gostar pode gozar comigo, se gostar pode dar-me um beijinho.
- Também não me parece. Toca em algum sítio?
- Toco numa escola, num hospital e num lar de velhinhos. Não toco em sítios mais comerciais. Mas devia. Escrevi um livro, tinha aqui dois, podia dar-lhe um, mas dei agora a amigos meus.
- Também escreve? O quê?
- Sim, escrevo poesia. E também ilustro.

(Eu Sei que vou te Amar, Caetano Veloso)

- Porque é que estás sentada neste muro sozinha?
- Estou à espera de um amigo meu.
- Estou agora a vender um cd, também não tenho aqui nenhum. Ainda não percebi porque é que estás aqui sentada.
- Estou a trabalhar no campeonato, mas já me vim embora e agora estou à espera de um amigo meu. Se alguém atirar moedas, dividimos os lucros.
- Está bem.
...
- Vera, vou-me embora. Um dia encontramo-nos outra vez por aí.
- Adeus, obrigada pela música.
- Adeus.


E o Nuno foi-se embora com a guitarra às costas, o mesmo ar boémio com que apareceu, nas suas sandálias de turista e barba por fazer. Não sei se um dia o encontro por aí outra vez, mas a música dele ficou comigo até acabar de se pôr o sol.